domingo, 15 de março de 2015

Botelho e seu fiel cachorro Altamiro

Não sei se vocês se lembram de um acidente aéreo que aconteceu há alguns anos. Um boeing 777-700 vinha da Itália para o Rio de Janeiro e caiu no Deserto do Saara. Todos os ocupantes morreram carbonizados, exceto um homem que viajava na primeira classe acompanhado de seu cachorro que, num primeiro momento, também sobreviveu. A mídia, na ocasião, deu ampla coberta ao fato durante alguns dias, tudo muito exagerado, tudo muito espetaculoso, grande parte das notícias sem base verídica e depois, como sempre acontece nessas situações, tudo mergulhou no esquecimento. Ocorre que esse cidadão sobrevivente é muito amigo de um conhecido de um primo meu de segundo grau que eu vejo de vez em quando. Ele se chama Botelho e o cachorro se chamava Altamiro.
O Botelho é um otimista inveterado. Desses caras que só querem ver o lado bom das coisas, o que de certa forma pode ser bom em dadas circunstâncias, mas quando cai no exagero transforma-se numa tremenda chatice. Afinal o que seria do bem se não existisse o mal, não é mesmo?
O Botelho sobreviveu ao acidente graças ao Altamiro. Literalmente. Literalmente não. Carnalmente seria mais correto dizer. Não o que vocês provavelmente estejam pensando. Não foi nada de sacanagem. Quer dizer, não essa sacanagem que vocês provavelmente estejam pensando. Foi outro tipo de sacanagem. O Botelho comeu o Altamiro. Isso mesmo. Quando a fome bateu, o Botelho foi mais rápido do que o Altamiro e abateu o pobre do cão e comeu ele cru mesmo. Cru propriamente não porque com o calor do deserto a carne ficou moqueadinha rapidinho.
Tudo isso o Botelho confessou depois consternado para a equipe de resgate que o resgatou. Confessou chorando diante dos ossos limpinhos do Altamiro. Limpinhos de tanto que o Botelho tinha chupado eles. Mas o Botelho fez questão de trazer a ossada inteirinha do Altamiro. Não permitiu que ficasse sequer um mínimo ossinho largado nas areias escaldantes daquele baita deserto.
O Botelho mandou depois fazer uma montagem com os ossos do Altamiro reproduzindo o esqueleto daquele que sempre foi seu fiel companheiro até o momento de sua morte (do fiel companheiro). Para preservar viva a memória do fiel companheiro morto em condições tão trágicas, mandou realizar aquela obra de arte.
O Botelho diz que o trabalho do artista ficou excelente. E tudo indica que ficou bom mesmo. Não é exagero do Botelho, não. Quem conheceu o Altamiro diz que a obra está quase irretocável. Um ou dois ossinhos que não se ajustaram bem. Coisinha insignificante.
O Botelho colocou a peça em posição de destaque no living do seu magnífico apartamento frente mar. Para todos os que o visitam diz que está muito satisfeito com tudo. Para os amigos mais íntimos, comenta de passagem, que às vezes sente pena que o Altamiro não esteja mais vivo para poder também admirar a obra.

(do livro “Contos Medonhos”)
http://books.google.com.br/books?id=ZZcuBQAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

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