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segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Palavras e coisas

 manoel de barros poeta maior 

entendedor de tudo sobre o nada

arauto de sábias ignorãnças  

das grandezas do ínfimo 

num de seus inspirados poemas rupestres  

diz sofrer um encantamento poético

ao olhar a garça-ave e a palavra garça

embalado que fica pela comunhão

do corpo níveo da ave 

em seu voo elegante e livre 

sobre as ainda lindezas do pantanal 

com o corpo sônico da palavra

em sua intrínseca beleza letral


eu eduardo poetastro menor 

bisbilhoteiro de nada se tanto 

neste poemículo citadino me atrevo a pisar  

ao avesso as pegadas poéticas de mestre manoel 

pra dizer que sofro um desencanto profundo

ao ver o estado da pomba-ave nesta cidade

e ler a palavra pomba no dicionário

perturbado que fico pela dissonância

entre o corpo físico imundo da ave 

e o corpo sônico harmônico da palavra


ave símbolo da paz e da pureza

na metrópole moderna se metamorfoseou em rato alado

e se imiscui sem cerimônia por todos os lados

domina o espaço de outros pássaros

caminha atrevidamente pelas calçadas e praças

ciscando lixo em busca frenética por alimento 

aboleta-se em árvores postes monumentos telhados 

defecando procriando espalhando piolhos fungos bactérias

dando com sua presença predatória 

à maioria das cidades do mundo 

valiosa cota de contribuição para a degradação 

da qualidade de vida e do meio ambiente urbano

degradação que vem na cola  

ao que se convencionou chamar de progresso 

domingo, 25 de dezembro de 2016

Ficção e Realidade - Os Discursos na Obra de Salústio

Dentre as quatro dicotomias da Lingüística de Ferdinand Saussure uma delas é a que opõe  parole e langue. Parole é o ato particular e individual de pôr em execução, oralmente ou com a escrita,  a langue, que é o sistema linguístico, o conjunto de signos linguísticos impessoais e sociais (SAUSSURE, 2000). Na esteira do conceito de parole pode-se definir enunciação  como o ato através do qual um conjunto de frases é produzido por um dado emitente, em circunstâncias espaciais e temporais determinadas, isto é, num dado contexto; o resultado do ato de enunciar é o enunciado, ou o discurso. Enunciação é assim, o processo de transformação da língua em enunciado ou discurso. Enunciado ou discurso é um conjunto de frases num dado contexto  (ANDRADE, 2001).
Discurso, no campo da Retórica, tem também o significado particular de texto oral ou escrito destinado a ser proferido em público (FERREIRA, 1999), com o objetivo de persuadir. É com este significado que deve ser entendido discurso, no título do presente ensaio.
De acordo com LEITE (2001:87 – 90), no âmbito da narrativa, termo geral para prosa de ficção, discurso representativo, mimético, que evoca um universo de experiência, que pode englobar também a História (grifo meu), entendida tanto como movimento do real, quanto no sentido de  historiografia, ou discurso do historiador  o discurso, em seu significado linguístico pode ser:
-           direto: reprodução direta da fala e/ou pensamentos das personagens;
-           indireto: onde o autor conta indiretamente, com as palavras do narrador, o que uma personagem pensou ou disse;
-           indireto livre: combinação dos dois anteriores, com o resultado ambíguo de modo a confundir a fala e/ou os pensamentos das personagens e os do narrador.
Na Historiografia Antiga, os historiadores utilizaram, largamente, o recurso estilístico de narrativa em discurso direto, com determinado personagem assumindo a enunciação através de um discurso, peça oratória, não necessariamente verídico, construído dentro dos paradigmas da Retórica Clássica (REBOUL, 1994: 55 - 80), como maneira de aumentar a  força  persuasiva dos seus argumentos (do personagem orador e por consequência do historiador). Esta técnica construtiva do texto evidencia o caráter literário – narrativo dessa historiografia antiga, sendo o discurso um elemento estranho e diferenciador em relação às Historiografias Modernas. Esse estranho procedimento, no entender contemporâneo permite que se resgate o conceito apresentado por Beard e Henderson (1998: 19 – 22) de defasagem entre o mundo contemporâneo e o mundo dos gregos e romanos; defasagem que gera dificuldade e  relatividade de compreensão, pelo homem moderno, de obras produzidas há mais de 2.000 anos numa sociedade muito distante e diferente da atual.
Para a História Positivista, do século XIX, a construção do enunciado devia ser baseada em fatos, com muitos detalhes concretos, como prova de sua existência, buscando uma visão de mundo cientificista. É a adoção da maneira de mostrar o passado “como realmente aconteceu”; é a História adotando um paradigma “científico” ( BANN, 1994: 51-64).
Até o século XVIII, para os historiadores a construção artística do texto era fundamental; com a História “científica”,  iníciada no século XIX, o historiador deve menos narrar e mais relatar, construindo o texto com especificação completa das fontes sobre as quais se apoia, devendo estas ser, tanto quando possível, documentos originais, fazendo-se a separação entre fontes primárias e secundárias, de tal forma que o leitor possa reconstruir o texto e criticar os processos de inferência e discussão que o historiador utilizou. “O texto histórico apresenta-se como uma síntese: isso quer dizer que ele é composto das fontes originais especificadas nas notas e referências, e nesta medida sua particularidade está aberta ao exame minucioso e ao desafio. Mas ele também se apresenta como uma réplica do real.” (BANN, op. cit. p. 58).
Apesar de que esta é a receita que dá origem a boa parte da História que ainda hoje se estuda nas escolas, muitos historiadores buscaram alterar este quadro, com a criação de uma “nova História”, que teve origem a partir da fundação da revista Annales, em 1929, na França, movimento que a partir dos anos 70 e 80 espalhou-se pelo mundo. Peter Burke (BURKE, 1992: 7-37) resume em seis pontos o contraste entre a antiga história (positivista, ”científica” do século XIX) e a nova história:
1º - pelo paradigma tradicional a História deve tratar essencialmente de política; a nova História interessa-se por toda  atividade humana.
2º - os historiadores tradicionais constroem a História como um relato linear cronológico dos acontecimentos; a nova História preocupa-se com a análise estruturalista dos fenômenos, procurando entendê-los como componentes de um macro-sistema, onde as partes relacionam-se entre si e formam um todo.
3º - a História tradicional oferece uma “visão de cima”, concentrada nos chamados grandes feitos dos grandes homens; a nova História tem procurado oferecer uma “visão por baixo” analisando, por exemplo, a cultura popular, mudanças sociais e fatos envolvendo pessoas comuns.
4º - pelo paradigma tradicional a História deve ser baseada em documentos os quais, em maioria, provêm de registros oficiais, preservados em arquivos governamentais; os registros oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial e a “História vista de baixo” tem exposto as limitaçóes desse tipo de documento.
5º - os historiadores tradicionais estão preocupados em encontrar resposta para atitudes individuais dos protagonistas da História; os historiadores da nova História estão preocupados tanto com atitudes individuais quanto coletivas, tanto com acontecimentos quando com tendências.
6º - de acordo com o paradigma tradicional a História é objetiva, cabendo ao historiador apresentar aos leitores os fatos “como eles realmente aconteceram”; a nova História considera irrealista este idealismo fatual, comprendendo que não se pode deixar de olhar o passado sob determinado ponto de vista particular.
“O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra.” (BURKE, op.cit. p. 15).
Como afirma Stephen Bann ( op. cit.  p. 61) “ Os historiadores estão conscientes de que não existe um único e privilegiado processo para exprimir a realidade do passado.”.
 A Historiografia Greco-Romana Arcaíca, de acordo com GENTILI e CERRI (1975), já apresentava contraposições tanto no plano das intenções e das enunciações programáticas, quanto naquele dos procedimentos narrativos. Preocupação da busca da verdade dos fatos, como em Tucídides e depois, em Políbio, com a rejeição de material herdado da tradição oral mítica, não sujeito a confirmação. Na fala de Tucídides, in GENTILI e CERRI (op. cit. p. 22):  “Forse l’assenza del favoloso renderà la narrazione meno piacevole all’auditorio; ma chi vorrà conoscere chiaramente la realtà dei fatti accaduti e di quelli identici o simili che potranno accadere conformemente alla natura dell’uomo, mi basterà che la giudichi utile.”. Se, para Tucídides, havia uma rejeição absoluta a qualquer elemento que não fosse passível de verificação crítica e estabelecimento da ideia do útil, como fim último do discurso historiográfico, para os seguidores de Isócrates, o discurso histórico era prolixo, com tendência à reflexão filosófica e moralizante, em linguagem sentenciosa e aforística, porém, num estilo áspero e frio (observar adiante posição divergente a esta assumida por Cícero). A esses se opunham historiadores como Duride de Samo para quem, o discurso histórico pertencia à esfera da mimesis, isto é, da representação icástica e fiel da vida humana; narração mimética, com todos os elementos agradáveis ao público, trazendo pela sugestão da palavra, a verdade da vida humana.
Duride enfatizava a exigência da palavra histórica escrita possuir a tensão e a concentração dramática da performance trágica. Seguindo os passos de Aristóteles, na Poética, mas com uma conotação teórica diversa, tirando a História do particular aristotélico, e colocando-a no plano da generalidade trágica, com a verdade mimética, como concentração dramática das paixões humanas.
“ In questa antinomia tra storia come narrazione del particolare e storia come individuazione del generale si definiscono, in termini ancor oggi attuali, i doveri dello storico riguardo ai fatti, cioè il problema del particolare e del generale, dell’oggettivo e del soggettivo, che è quanto dire del rapporto dialettico tra fatti e interpretazione.” (GENTILE e CERRI op. cit. p.33).
Na Antiga Historiografia, o uso do discurso, peça oratória, tinha força de elemento estilístico  da narrativa histórica e “ toda organização daquela fala deve-se ao ingenium do historiográfo. Mais do que verdadeiros, importa à narrativa que os discursos sejam verossímeis, isto é, que tenham credibildade (fides).” (MARTINS, 2002). Mas, afinal, o que é a fides?
Fides estava no centro da ordem política, social e jurídica de Roma. Seria uma manifestação de respeito aos compromissos assumidos, aos contratos, aos tratados. Juntamente com a pietas, que seria a atitude de respeito no relacionamento entre as pessoas ligadas por natureza, como por  exemplo, a obediência que um filho devia a um pai, e a uirtus, que seria a manifestação da virilidade, da coragem, formava uma trilogia que dominava todos os aspectos da vida militar, familiar, econômica e social na Urbs (GRIMAL, 1965).
“A fides é um conceito central no núcleo dos valores que regulam o organismo ideológico da sociedade romana; em linhas gerais, pode ser definida como o valor que garante o relacionamento entre duas partes. O relacionamento pode ser entre sujeitos iguais: como a amizade, o matrimônio, as alianças, os tratados internacionais e de uma maneira geral, os negócios jurídicos e comerciais. Mas a fides garante também (e talvez mais rigorosamente) os relacionamentos entre desiguais: entre patrono e cliente, entre vencedor e vencido, entre potência hegemônica e cliente estrangeiro, entre magistrado e cidadãos, entre juiz e réu.” ( E. Narducci, em nota à p. 93 de CICERONE, 1989).
 A raiz etimológica da palavra teria vindo do indo-europeu *bheidh que significaria tanto persuadir quanto confiar, dando origem no grego arcáico a “peitho”, eu persuado, como a “peithomai”, eu tenho confiança (ERNOUT,1951:414 – 416). Admitida essa origem, pode-se deduzir que a fides está no centro do  relacionamento entre indivíduos no qual, alguns passam a dar crédito, passam a confiar em outros que, por alguma razão, conseguiram persuadir os primeiros a procederem daquela forma.
 Na literatura do período republicano o significado corrente da palavra era “garantia” com um deslocamento do polo relacional, indo daquele  que  confia, por ter sido persuadido, para aquele  que   prática a ação; era a prática da ação o aval, a garantia do relacionamento: “ Fundamentum autem est iustitiae fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas... quia fiat quod dictum est, appellatam fidem – Fondamento della giustizia è la fede, cioè la osservanza e la sincerità degli impegni e degli accordi ... la fede si chiama così, perché si fa ciò che è stato detto.” ( CICERONE, 1989:92 – 93). Sob esse ponto de vista, pode-se associar  fides  com a qualidade de “sinceridade” da ação.  
Visto, porém, em seu caráter amplo, o relacionamento  de confiança que necessariamente deve prevalecer entre as partes, deve ser bilateral, deve ser selado, ainda que de maneira simbólica, pelo pacto, pelo tratado, pela aliança, pela foedus: “ accipe daque fidem foedusque feri bene firmum/ quod mihi reque, fide, regno uobisque, Quiritis, se fortunatum, feliciter ac bene uortat.” (ENNIO, 1923:28). Virgílio (1993:360), na Eneida, segue, literalmente,  os passos de Ennio: “Accipe daque fidem.Sunt nobis fortia bello/ Pectora, sunt animi et rebus spectata iuuentus.”   A fides é então um “juramento que compromete ambas as partes na observância de um pacto “bem firme”” (PEREIRA, 1989:324), no qual alguém, pelo seu comportamento, pela sua ação  garante o cumprimento do pacto (foedus), e outrém, face àquele comportamento, confia no cumprimento do mesmo.
Numa escala de responsabilidade moral, é razoável admitir-se que aquele que pratica a ação tem a primazia em fazer o pacto funcionar, pois é a partir de seu comportamento que o relacionamento criará condições de se dar com ou sem fides. Em outras palavras, o agente da ação deverá tomar a iniciativa em demonstrar “sinceridade” de propósitos a fim de que germine  “confiança” no outro, estando claro, porém, que este deverá receber a ação também com “sinceridade” para que a conexão adequada seja efetivada estabelecendo-se o “pacto de lealdade” (foedus) entre as partes. Retomando as palavras de Cícero supracitadas, concluí-se sem muito esforço que nada é mais embaraçoso à concretização desse “pacto” do que o comportamento espelhado no adágio popular: “ faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Porém, é o receptor da ação quem determina, “dá a última palavra”, no relacionamento com ou sem fides. O agente da ação toma a iniciativa para um relacionamento com fides, o receptor da ação sela, ou não, o relacionamento com fides.
Exemplos de fides são encontrados nas lendas e na história romanas, como por exemplo, a celebração da paz entre latinos e sabinos e o castigo que Meto, rei albano, sofre devido ao seu perjúrio (ofensa à fides), cenas descritas no escudo de Enéias ( Eneida, VIII); ou a lenda envolvendo o cônsul Régulo, que durante a Primeira Guerra Púnica, após obter diversas vitórias é feito prisioneiro, no norte da África; é então enviado a Roma para negociar sua libertação em troca de prisioneiros cartagineses, sob o juramento de que retornaria a Cartago caso não obtivesse êxito na missão. Régulo, em Roma, persuade o Senado a não entregar os prisioneiros, e volta para Cartago, para os suplícios da prisão, honrando assim seu juramento, pois era homem de fides   (PEREIRA, op. cit. p. 327).
Tito Lívio (1996: 43 – 46) relata episódio da luta dos romanos com os faliscos no qual um professor leva seus alunos para longe da escola, a fim de traiçoeiramente os entregar ao comandante do exército romano, o general Camilo; este não aceita a oferta, respondendo ao inimigo traidor que não eram com aquelas armas que o exército romano combatia; a população falisca entusiasmada com o procedimento leal do comandante, com a fides romana,  pede a paz. Saindo do contexto heroico e passando ao do quotidiano, pode-se lembrar o gênero de relação social tipicamente romano, aquele que unia cliente e patrono, no qual a fides também brilhava ( PEREIRA, op. cit. p. 327).
A literatura antiga latina, alicerçada na Retórica, dá, porém, para a fides um conceito bem diverso daquele até aqui descrito; abandona o significado de natureza moral, ética, assumindo significado de caráter eminentemente técnico, ligado à composição da obra. Cícero (1988: 480 – 481) discorrendo sobre as características oratórias dos diversos tipos de discurso afirma: “ Ergo in allis, id est in historia (grifo meu) et in eo quod appellamus “épideiktikón”, placet omnia dici Isocrateo Theopompeoque more illa circumscriptione ambituque, ut tanquam in orbe inclusa currat oratio, quoad insistat in singulis perfectis absolutisque sententiis ... Nam cum is est auditor qui non vereatur ne compositae orationis insidiis sua fides attemptetur, gratiam quoque habet oratori voluptati aurium servienti. Genus autem hoc orationis neque totum assumendum est ad causas forensis neque omnino repudiandum (grifo meu); si enim semper utare, cum satietatem affert tum quale sit etiam ab imperitis agnoscitur; detrahit praeterea actionis dolorem, aufert humanum sensum auditoris, toliit funditus veritatem et fidem (grifo meu).Cícero recomenda assim, para a narração da história, para os discursos epidíticos, e para os discursos forenses, embora para esses com moderação, o uso de recursos retóricos que visem agradar os ouvidos dos ouvintes, sem destruir o fundamento de verdade e de sinceridade que o discurso deve possuir. Quintiliano (1998: 204 –205), discorrendo sobre as características da oratória, afirma que a narratio, como qualquer outra parte do discurso deve ser ornada o máximo possível de todo embelezamento e sedução: (“Ego uero ... narrationem, ut si ullam partem orationis, omni qua potest gratia et uenere exornandam puto.”). Contudo, segundo o conselho de Horácio (1944: 246 – 247), os exageros devem ser evitados para não diminuir a autoridade das palavras: (“Multa fidem promissa levant, ubi plenius aequo / Laudat venales qui uult extrudere merce.”.
De acordo com a análise de Achcar (1994: 44):”Como termo técnico, fides descreve uma relação, não entre autor e obra, mas entre esta e o público. Fides é uma disposição que a obra deve suscitar no receptor, quer se trate de uma peça oratória, quer de um poema. É, portanto, resultado da composição adequada do texto” .
Fides deve nascer do relacionamento  entre obra e  receptor. O “ pacto de lealdade” (foedus) deve se dar entre obra e público que a recepciona, cabendo ao autor, através de sua persona artística  criar as condições para que seu discurso conecte-se a seu público. Fides associa-se à ueritas que o discurso deve produzir, não tendo necessariamente nada a ver com a personalidade do autor, a qual pode ou não corresponder aos  requisitos exigidos pela obra para que se estabeleça a fides. A obra é que deve conter “sinceridade” para que o público possa recepcioná-la com “confiança”.  “Portanto, em sua aplicação literária, fides designa um efeito da mimese bem realizada e não corresponde à ideia de sinceridade no que esta possa ter de extrapolação psicológica ou biografista.” ( ACHCAR,  op. cit., p. 45).
João Ângelo Oliva Neto, na Introdução a O livro de Catulo (CATULO, 1996: 36) analisando esse tema assim comenta: “Na verdade, esses artifícios são inerentes ao agenciamento da linguagem, com vistas a maior eficiência, segundo os preceitos da Retórica, que na Antiguidade incluía teoria e crítica literárias. Dessa forma, discursos em praça pública e poemas eram tanto mais eficientes quanto mais parecessem verdadeiros, quanto mais verossímeis.”.
Na Historiografia Romana Antiga, como já mencionado anteriormente, os autores, usando de seu ingenium,  lançavam mão de recursos da Retórica, para dar fides  a sua ars. Dentre esses historiadores encontra-se Salústio que, embora pudesse apoiar-se em fatos, criava discursos e colocava-os na boca de personagens históricos. A veracidade dos discursos não era o fator relevante. O importante era que os discursos dessem à narrativa verossimilhança, impressão de verdade, impressão de sinceridade, impregnando-a  com credibilidade, criando fides e levando o público a sentir confiança na mesma, a ser persuadido por ela, dando fides a ela, selando o pacto (foedus) entre obra e público.
Na obra A conjuração de Catilina, Salústio (1990) apresenta quatro exemplos magníficos de discursos, construídos com o ingenium do autor usando a ars da Retórica Clássica, para compor a obra historiográfica: o 1º discurso de Catilina; o discurso de César; o discurso de Catão: e o 2º discurso de Catilina. Esse discursos, como já se afirmou, têm o objetivo de fazer com que a obra historiográfica, como um todo, receba  e dê credibilidade ( accipe daque fidem); a veracidade dos mesmos não é relevante, o que importa é que pareçam verossímeis ao público, que dêem impressão de sinceridade, para que a recepção da obra seja mais intensa. Construir os discursos dentro dos preceitos da Retórica é um dos meios que o autor usa para tentar fazer com que os mesmos pareçam verossímeis. A seguir, faz-se breve análise dos discursos: 1º de Catilina, de César e de Catão. sob a égide da Retórica Clássica.
 O 1º discurso de Catilina (SALÚSTIO op. cit. pp. 106 – 108 (20)) quanto à inventio, permite que o mesmo seja classificado no gênero deliberativo: Catilina reúne um grupo de pessoas, numa parte reservada de sua casa, para deliberar sobre a conjuração, com o intuito de exortá-las, aconselhá-las a aderirem à conjuração; os frutos oriundos dessa conduta serão as benesses futuras de poder e riqueza; e o auditório é restrito.
O “ethos” do orador é coerente com o retrato  do mesmo traçado pelo autor (op. cit.  p 99 (5)): apresenta-se com destemor (“espírito atirado”) e muita eloquência; não dissimula sua ambição (“sempre a ambicionar coisas sem limites”) – “... as riquezas, a honra, a glória,... os magníficos espólios de guerra... quando chegar ao consulado (“o desejo desenfreado de se apoderar da república”)” – levada avante não importando por que meios; valoriza a astúcia – “... não deixaria o certo na busca do incerto” -; o incitamento à revolta e ao ódio (“... as discórdias entre cidadãos”) – “... os mesmos ódios”. Para inspirar confiança (fides) ao seu auditório procura se mostrar: sensato, dando conselhos pertinentes, fundamentados em fatos; sincero, não dissimulando suas ideias, pelo menos aparentemente; simpático, disposto a ajudar o auditório (a cada um caberá uma parte  do butim)
Catilina apresenta, como prova extrínseca para validar a conjuração, a injustiça social que assola a República, provocada pela oligarquia no poder. Salústio ao traçar o retrato de Catilina endossa, coerentemente, esse mesmo ponto de vista, da situação decadente da República, e aponta essa situação como agente motivador da revolta: “Estimulavam-no ainda os costumes corruptos da nação sobre a qual se abatiam dois vícios diferentes entre si, mas dos mais funestos: o luxo e a cobiça.”. Como prova intrínseca, Catilina usa o recurso da amplificação (de uso corrente nos discursos do gênero demonstrativo), levando ao limite do exagero uma situação, como maneira de validar seus argumentos : “ ... construindo dentro do mar e aplainando montanhas ... o que nos resta senão um mísero sopro vital?”.
Na busca por argumentos, Catilina utiliza vários “topoi” (Cf. REBOUL op.cit., pp.62 - 63): argumento tipo, na peroratio – “... a não ser talvez que eu esteja enganado e vós estejais dispostos mais a servir do que a mandar.”; tipo de argumento, de caráter positivo – “...  eu vos asseguro diante dos deuses e dos homens: a  vitória está em nossas mãos ... Ei-la, eis a liberdade com que sonhastes”; questão tipo – “Até quando enfim suportareis isso tudo, gente brava? Não é melhor morrer ... ? Por que então não vos despertais?”.
Por tratar-se de um discurso deliberativo, de acordo com Aristóteles, na dispositio, não haveria necessidade nem de exortium, nem de narratio, pois neste gênero de discurso, o auditório já sabe do que se trata e o discurso trata do que virá. Contudo, podemos considerar que o trecho: “ Se eu já não conhecesse bem vossa coragem... se nós mesmos não conquistarmos nossa liberdade.”, constitui um breve exordium. Catilina dá indicação de que por ser discurso deliberativo, o exordium seria desnecessário (“Meus projetos, vós todos já antes os ouvistes separadamente” – Salústio mostra que é conhecedor do gênero), a questão não é expor os fatos que serão tratados ou a tese que se vai tentar provar, o objetivo do exordium, no caso, é envolver o auditório no objetivo comum, a conjuração, mediante os “topoi” do enaltecimento, da confiança, da amizade : “ ... vossa coragem e fidelidade ... vossa coragem e lealdade a mim ... são iguais para vós as coisas que para mim são boas e más ... os mesmos anseios e os mesmos ódios ... amizade inabalável.”. A estratégia retórica de Catilina é clara: conquistar o auditório para sua causa, procurando agradá-lo (delectare) , num estilo ameno (medium) e enfatizando a equivalência de caráter (ethos) entre ele e o auditório.
Por ser discurso deliberativo a narratio  pode aglutinar-se à argumentatio, sendo o tipo de argumento a exemplificação, característico desse gênero de discurso. A narratio-argumentatio pode ser dividida em dois blocos, nos quais os exemplos sucedem-se em pares de oposições “nós-eles” – “os nossos problemas(nós)-a causa desses problemas(eles)”. O primeiro vai de “Depois que o centro das decisões...” até  “os riscos, os processos, a miséria.”. O segundo bloco é aberto pelos “topoi”: “Até quando... Não é melhor... Ora, eu vos asseguro ...” e retoma os exemplos em pares sequênciais de oposições “nós-eles” – “ Temos o vigor - ao contrário ...; eles sobrem riquezas -a nós faltem recursos ... Eles fazem casas - a nós não e dado ...; Embora comprem ... - Mas nós temos a penúria ... sopro vital?”. Essas oposições servem, pelo contraste que apresentam entre a situação privilegiada dos que detêm o poder, e a situação de penúria da  massa de excluídos, como exemplos para explicar (docere) num estilo direto, simples (tenue) usando a razão (logos)  para justificar  a revolta.
A conclusão do discurso, a peroratio inicia-se com dois “topoi”: “Por que...? Ei-la... sonhastes;” e desenvolve-se no sentido de elevar o ânimo do auditório para conquistá-lo, acenando com as recompensas a serem alcançadas; recompensas  que têm poder de persuasão muito maior do que qualquer discurso. O orador coloca-se numa posição de subserviência (cínica): “Como comandante ou soldado, estou à vossa disposição... quando chegar ao consulado” e finaliza com um “topos” que procura atingir o amor-próprio do auditório, num tom perverso que dá à renuncia de adesão à revolta caráter de pusilanimidade. O estilo é elevado (grave), visa incitar o auditório à ação (movere) elevando sua emoção (pathos).
O discurso de César ( op. cit. pp. 123 – 126 (51)) é deliberativo, dirigido aos membros do Senado, reunidos para decidir sobre as penas a serem aplicadas aos traidores envolvidos na Conjuração. César, como é característica do discurso deliberativo, argumenta mediante série de exemplos tomados da História de Roma, conjeturando sobre o futuro. O “ethos” do orador é pautado pela ponderação, pelo equilíbrio e, tanto quanto possível, pela clemência. Esse “ethos” é perfeitamente coerente com o retrato do orador traçado por Salústio (op. cit. p.130 (54)): “César se distinguia pelos favores e generosidade... ilustre pela doçura e pela clemência... amparando, perdoando)”. Seus conselhos são para que se tenha isenção, ponderação:” ... questões controvertidas devem estar isentas de ódio, amor, rancor, compaixão ... ponderai bem o que decidis para os outros.”. Vários “topoi” disseminam-se pelo texto: “Mas – pelos deuses imortais! – a que visa esse tipo de discurso?; A nenhum ser humano as injustiças que lhe fazem parecem de pouca monta; quanto maior é a fortuna, menor é a liberdade;  Mas – pelos deuses imortais – por que não acrescentaste ao teu parecer que em primeiro lugar fossem eles açoitados?; Pode haver punição rigorosa e cruel demais para homens culpados de tais crimes?”.
Na dispositio, há um breve exordium (“Todas as pessoas... agiram corretamente e com coerência”), como é característica do discurso de gênero deliberativo. César procura envolver o auditório em sua tese decidir com ponderação (“Quando concentramos nosso esforço na razão, o espírito mantém toda sua força) , sem ódio, longe do impulso da ira, agindo corretamente, com coerência. A narratio e a argumentatio (“Durante a  guerra da Macedônia ... a custo conservamos o que eles tão bem criaram.”) desenvolvem-se simultaneamente, como é, também, característica do gênero deliberativo de discurso, sendo a argumentação baseada em exemplos, tirados da História de Roma e construindo a confirmatio de sua tese: decidir sem extremismo, sem emoção, com sensatez, com a razão; todos os argumentos resumem-se ao  argumento único de decidir com sabedoria. Na peroratio (“Meu voto ... e a salvação de todos.”) César dá seu parecer sobre a pena mantendo seu “ethos” equilibrado, propondo castigos severos aos revoltosos mas evitando a pena de morte.
Quanto  à elocutio pode-se dizer que o discurso de César tem estilo simples (tenue), com objetivo de explicar (docere)  usando como prova a razão (logos). É coerente com o “ethos” do orador caracterizado pela benevolência e pelo equilíbrio.
O discurso de Catão é pronunciado logo após o discurso de César é, também, do gênero deliberativo, dirigido, igualmente, aos membros do Senado (assembléia), reunidos para decidirem sobre as penas a serem aplicadas aos prisioneiros envolvidos na Conjuração, visando aconselhar os senadores em sua decisão, sobre o que é útil para o futuro da República, lançando mão do processo indutivo de argumentação., tomando exemplos da História de Roma, bem como fatos da vida contemporânea do Estado. O “ethos” do orador é de integridade moral, severidade, de firmeza de opiniões. Não admite clemência para os culpados, ataca com dureza os costumes corrompidos da oligarquia. Esse “ethos” é coerente com o retrato que Salústio traça do orador (op. cit.  p. 130 (54)): ”Catão pela vida inatacável... a severidade lhe conferia respeito ... desgraça dos maus ... firmeza ... amor da modéstia, do dever ... da severidade. Em vários momentos utiliza-se de “topos” para construir seus argumentos: “ Mas – pelos deuses imortais! – é a vós que eu me dirijo; Mas não nos alonguemos sobre esse assunto; a situação é grave, mas não a temeis; Quando nos entregamos à preguiça e à covardia, vãs são as preces aos deuses”.
A dispositio pode ser dividida num exordium (“Bem diferente é... e a nossa existência corre perigo.”  Onde defende a tese de que os inimigos da pátria devem ser castigados sem clemência, contrária, portanto à de César. Na narratio-argumentatio usa exemplo da História de Roma no qual a severidade é a tônica: “No tempo antigo, A. Mânlio Torquato, durante a guerra contra os gauleses, mandou matar seu filho, por ter ele, contra suas ordens, combatido contra o inimigo...”. Seus argumentos são diretos, duros, atacando não só os conspiradores, mas também a oligarquia: “ Aqui alguém vem me falar em clemência e misericórdia... esbanjar os bens dos outros se chama generosidade; ousadia do crime se dá o nome de bravura”. Para derrubar os argumentos de César usa a confirmatio – refutatio: “César discorreu nesta assembléia... tendo, a meu ver, feito juízo equivocado... Seu parecer foi... Por isso essa medida é inócua...”. Todos os argumentos formam um argumento único, coeso: punição máxima aos criminosos. A peroratio (“É por isso que meu parecer... como se tivessem sido surpreendidos em flagrante delito.” Resume o ponto de vista defendido por Catão durante todo o discurso de que o crime cometido foi execrável e os envolvidos devam ser condenados à morte.
Quanto à elocutio pode-se considerar que o estilo é elevado (grave) com o objetivo de comover o auditório (movere), aumentando o nível de emoção (pathos) a fim de convencer a assembléia a acatar seu ponto de vista. E Catão vence: “ Quando Catão se senta, todos os consulares e grande parte do senado aplaudem sua moção... a decisão do senado é tomada de acordo com a proposta dele.” . 
Conclui-se dessa análise sucinta que os discursos construídos por Salústio obedecem aos preceitos da Retórica Clássica; com isso, para o público antigo que tomava contato com a obra historiogrãfica do autor, os discursos deveriam parecer verossímeis; esse fato deveria contribuir para o aumento da fides obra-público, intensificando a recepção da obra.     


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APÊNDICE

Complementando algumas ideias apresentadas no corpo do ensaio, faço as considerações que seguem.
Consideremos um sistema cartesiano ortogonal de referência; vamos denominar o eixo horizontal de eixo do conceitual, ou do imaginário, ou do MITO; o eixo vertical de eixo do empírico, ou do real, ou da HISTÓRIA. Consideremos uma curva hiperbólica que tende, em cada um de seus extremos, assintoticamente para cada um desses eixos, tangenciando-os no infinito. Temos a seguinte figura:


Essa curva vamos chamar de curva de mimesis do emissor. Devemos entender emissor como o autor, não pessoa física, mas autor persona emissora, isto é, emissor da experiência literária, enunciador da obra (como esses conceitos não se restringem ao campo da linguagem verbal apenas, mas podem ser estendidos aos campos da linguagem visual, auditiva (musical), a persona emissora poderia ser generalizada para uma persona emissora semiótica). O que representa a curva de mimesis do emissor? Representa qual a tendência da obra entre os polos conceitual – empírico, imaginário – real, mítico – histórico na interface da persona emissora com a obra criada, independente do gênero da obra: épico, lírico, dramático, historiográfico, epistolográfico; independente de sua estrutura: foco narrativo, personagens, espaço, tempo, trama. Essa curva representa qual a tendência do texto: se ele tende para o conceitual, o imaginário, aquilo que usualmente se denomina de ficção, o mito ou, se ele tende para o empírico, o real, para a “realtà fattuale”, para aquilo que se costuma chamar de verdade, ou História.
Uma obra que esteja localizada, na curva de mimesis do emissor, por exemplo, no ponto (1), é uma obra fundamentada empiricamente, que tende para o real, para a História. Porém, por mais real que a obra seja sempre terá um resíduo, um vestígio, pelo menos, de conceitual, de imaginário, de Mito. O próprio ato de relatar a História, por mais fiel que seja aos fatos, já introduz um componente imaginário, inerente à linguagem verbal que é um ato mental racional da persona emissora. E, analogamente, por mais conceitual que seja qualquer narrativa, por mais imaginária que seja sua construção, por mais que se apoie no Mito, sempre terá um resíduo de empírico, de real, de História. Por mais imaginária que seja a obra, haverá sempre algo de fatual e de real concreto na sua ficção, nem que sejam as ondas sonoras de sua emissão oral, ou as palavras escritas que a compõem.
Consideremos um novo sistema cartesiano ortogonal de referência, no qual o eixo horizontal denominaremos de eixo da verossimilhança da obra, e o eixo vertical denominaremos de eixo da fides que se desenvolve entre a persona receptora e a obra. A persona receptora é a pessoa física (toda e qualquer) que ao entrar em contato com a obra (qualquer que seja o meio – visual, auditivo, tátil) transforma-se numa persona e recria a obra (sempre). Neste ato de recriação da obra a persona receptora associará à obra certa verossimilhança, certa impressão de verdade. É a persona receptora que dá  a palavra final quanto a verossimilhança da obra, no ato de sua recriação. A obra pode ter sido construída dentro de padrões de gênero, com engenho e arte pelo autor persona emissora, na tentativa de dar à obra a máxima  verossimilhança possível porém, se a persona receptora não tiver condições para perceber as qualidades da obra todo esforço da persona emissora terá sido em vão.Isso explicaria porque uma obra genial, muitas vezes, leva décadas para ter seu valor reconhecido. Ou então, por que uma obra considerada  inverossímil para muitos, para alguém “de muita imaginação” ou de conduta tendenciosa parece verossímil. O “espírito da época” pode contribuir para a verossimilhança da obra. Isso explicaria porque muitas obras medíocres têm sucesso retumbante e logo depois caem no esquecimento. A obra é a mesma o que muda é como ela é recepcionada.
Neste sistema podemos traçar a seguinte figura:


A curva que, partindo da origem do sistema de referência e sobe tendendo assintoticamente para um limite de fides denominamos  curva de mimesis do receptor. Lembremos que receptor não é a pessoa física, mas a persona receptora que se desenvolve na pessoa física, ao entrar em contato com a obra, recriando-a. Essa curva representa a interação que se desenvolve entre a persona receptora e a obra: quanto maior a verossimilhança que a persona receptora acha que a obra tem maior a fides que ela dá a obra. Maior a interação, maior a receptividade. A curva de mimesis do receptor é a interface entre a persona receptora e a obra; ela permite avaliar a intensidade do pacto, do foedus, entre a persona receptora e a obra. A fides tem um limite máximo atingido para uma verossimilhança infinitamente grande; essa verossimilhança infinita podemos chamar de verdade – o que é verdade, é, não admite qualquer dúvida, sua fides é máxima.
O que Salústio fazia em suas monografias históricas, ao criar discursos e colocá-los na boca de seus personagens, era, na curva de mimesis do emissor, deslocar o ponto (1)  para a direção do ponto (2), com o texto perdendo “historicidade” e ganhando “narratividade”. Com qual objetivo? Fazer, na curva de mimesis do receptor, o ponto (a) deslocar-se para a direção do ponto (b), para aumentar a receptividade do texto. Salústio devia saber que procedendo daquela maneira seu público recepcionaria sua obra com mais verossimilhança, com mais fides. 

domingo, 20 de março de 2016

Uma breve análise da Sátira I de Juvenal

     Décimo Júnio Juvenal nasceu em Aquino, cidade cerca de 130 km a sudoeste de Roma, entre 54-68 d.C., sob o império de Nero e morreu entre 130-138 d.C., sob o reinado de Adriano ( Rudd e Courtney, 1990: 1, 3 ). Escreveu dezesseis sátiras, agrupadas em cinco livros, nas quais “pode pôr em ridículo e fustigar, sem receio, os costumes torpes, a vaidade dos desejos humanos, as ambições dos literatos, a falta de caráter da aristocracia” (Leoni, 1971: 112). “Junto com Tácito, Juvenal será o último baluarte da defesa da latinidade de Roma. Suas Sátiras são um violento panfleto contra a depravação da Roma de sua época, cuja causa é vista no abandono das antigas instituições e costumes romanos e na assimilação da civilização helenística. Para Juvenal, a sociedade romana vive uma profunda crise de valores, crise que abrange a vida política, literária, religiosa, social e moral.” ( D’Onofrio, 1968: 26).
     O objetivo deste trabalho é proceder a uma breve análise crítica literária da Sátira I de Juvenal, sob os pontos de vista de sua organização, de sua temática e de sua contextualização. Como texto base, em latim, utilizamos o de P. De Labriolle e F. Villeneuve, em sua sexta edição (Paris, 1957), apresentado em Giovenale (1989); e como texto de apoio, em português, utilizamos o trabalho anexado à tese de Doutoramento de Parziale (1995), com alterações, quando as julgamos pertinentes.
     A Sátira I pode ser considerada uma introdução a toda obra de Juvenal, pelo caráter programático que apresenta. Nela, o poeta justifica, diante do quadro da degradada sociedade romana que lhe é contemporânea, o porquê é levado a escrever sátiras. Não alimenta esperança de que no futuro as coisas melhorem e vai buscar no passado, não no passado épico, heroico mitológico, mas no passado recente, concreto a fonte de inspiração para sua obra.
     Estudiosos da obra de Juvenal têm sugerido a divisão dos 171 versos, que compõem a Sátira I, em blocos que apresentariam uma temática uniforme, porém não têm chegado a um consenso quanto a essa divisão estrutural. Highet (1961: 47, 246), num amplo estudo da obra de Juvenal, propõe a divisão do poema em quatro partes: a) motivo geral vv.1-18 – por que eu escrevo poesia; b) motivo particular vv. 19-80 – por que eu escolho sátira; c) assuntos vv. 81-146 – os temas principais da minha sátira são ganância e extravagância; d) ilustrações vv. 147-171 – os perigos, por escrever sátira com temas contemporâneos, limitam minha escolha de ilustrações e confinam-me ao passado. C. Knapp, citado por Highet, propõe a divisão em duas partes: a) vv. 1-80 – por que escrever sátiras; b) vv. 81-171 – ilustração dos vícios. Parziale, às páginas 15-16 do anexo (v.2) à sua tese, sugere a divisão em três partes: “1) o exórdio (vv. 1-21)  em que explica por que escreve versos; 2) a parte central (vv. 22-146) em que justifica, através de exemplos, a opção feita em vista do único objetivo: combater os vícios especialmente o da corrupção e o da avareza, geradores e causadores de todos os outros; 3) o epílogo (vv. 147-171) em que, uma vez constatados os perigos inerentes à denúncia dos corruptos e corruptores, declara que pretende falar dos mortos, deixando para o leitor o julgamento sobre quanto ocorre na vida presente.” 
     Além disso, alguns desses estudiosos têm procurado enquadrar o poema numa estrutura retórica clássica, como o faz J. E. Church, citado por Highet, propondo uma divisão em exordium (vv. 1-21), confirmatio (vv. 22-146) e peroratio (vv. 147-171), divisão também adotada por Parziale, citado acima, que chama a primeira parte de sua divisão de exórdio; a parte central, com justificativas através de exemplos de narratio (v.1 p. 199); e a terceira parte, denominada de epílogo, seria a peroratio. 
   Em nosso entender, nenhuma dessas divisões é satisfatória e muito menos o enquadramento retórico rígido do poema. Se considerássemos, por exemplo, a divisão em quatro partes, proposta por Highet, esbarraríamos na dificuldade de explicar por que tantos importantes tipos de vícios, apresentados entre os versos 21 e 80, ficam fora do bloco: c) assuntos – os temas principais das sátiras. Dificuldade idêntica encontraríamos na divisão em duas partes, proposta por Knapp. Se seguíssemos Church, e também Parziale, e dividíssemos a Sátira em três partes e as nomeássemos respectivamente por exordium, narratio-confirmatio e peroratio, seguindo o modelo retórico clássico, geraríamos sérios problemas conceituais. 
     A pressuposição de que Juvenal dominava os princípios da Retórica de seu tempo parece-nos bem razoável ( nos vv. 15-17 da Sátira I ele atesta seus estudos retóricos) e, sendo assim, se pretendesse dar cunho retórico formal a seu poema, acreditamos, tê-lo-ia feito adequadamente. Se lançarmos mão dos preceitos elementares da Retórica Clássica ( Reboul, 2000:43-69), podemos classificar a sátira dentro do gênero de discurso demonstrativo, com auditório o espectador (leitor), tratando de um tempo presente, com a finalidade de censurar, valores vis, com argumento-tipo amplificação. 
    O exordium é a parte que inicia o discurso, tendo uma função essencialmente fática: tornar o auditório dócil, atento e benevolente (o que vale particularmente para o discurso oral), devendo-se proceder a uma exposição clara e breve da questão que vai ser tratada, ou ainda da tese que se vai tentar provar (status quaestiones) e, no gênero de discurso demonstrativo, em particular, o exordium consiste em fazer o auditório sentir que está pessoalmente implicado no que se vai dizer, em incluí-lo no fato (cf. Aristóteles, Retórica, 1415b). 
     Não nos parece que fora esse o propósito de Juvenal na Sátira I que é iniciada já com vitupérios, e vitupérios específicos, contra a mediocridade literária do seu tempo. O poeta apresenta o assunto que pretende abordar: escrever sátiras ao estilo de Lucílio (vv. 19-20) lançando mão, não de argumentos gerais (e.g. o estado da sociedade romana como um todo, que será a matéria prima para a sua obra) que justifiquem seu procedimento, mas de argumentos particulares, a decadência literária do seu tempo. Esses vinte e um primeiros versos são, é claro, uma introdução ao poema, mas não no sentido estrito de um exordium. Entendemos que, caso o poeta pretendesse que essa introdução se aproximasse de um exordium, teria iniciado a sátira com uma ideia geral e breve da, a seus olhos, degradada situação social romana, a qual justificaria escrever sátiras e não, encontrar no fato de estar a literatura que lhe é contemporânea em decadência a justificativa para escrever sátiras. Talvez tenha sido a especificidade do “vício” desses primeiros versos que levou Highet a estender sua introdução até o verso 80, em busca de mais “vícios”. Juvenal faz da introdução da Sátira I um vitupério irônico e jocoso (gozação mesmo) contra seus pares, literatos contemporâneos, e a baixa qualidade da literatura por eles produzida e daí extrapola concluindo: “ diante de tanta mediocridade eu também posso me arvorar em poeta só que minha atitude será de ataque e minha arma a sátira” .  
     A peroratio é a conclusão do discurso, podendo ter várias partes, como a ênfase em pontos já tratados, o despertar piedade ou indignação no auditório e a recapitulação dos fatos. Porém, um ponto fundamental deve ser obedecido na peroratio: não devem ser trazidos argumentos novos sob pena do discurso perder a sua unidade. Ora, nos versos derradeiros (vv. 147-171), Juvenal traz a baila dois novos temas: aponta para qual será a perspectiva futura da sociedade romana e indica onde irá buscar assunto para seus poemas, descaracterizando o fecho do poema como uma peroratio.
     Alicerçados nesses argumentos, propomos uma outra abordagem para compreender a organização da Sátira I: considerá-la um poema diálogo, com inspiração platônica, (forma utilizada corriqueiramente por outros satiristas - cf. Horácio (Sat. I, 1, 10; II,1) e Pérsio( Sat. I, III, IV)), no qual, um “eu”, que seria a persona lírica do poeta, dialoga com um “tu”, um interlocutor anônimo, que seria a persona lírica do ouvinte ou do leitor. Esse “eu”, do primeiro verso até dois terços do verso 149, vai desfiando seus argumentos diante do “tu” silente, que apenas ouve a arenga do “eu”, que colhe seus exemplos na sociedade atual, que tem presente diante dos olhos, ou de um passado recente, e com eles constrói proposições afirmativas entrecortadas a todo o momento de proposições interrogativas, interrogativas retóricas, que devem ser entendidas como dirigidas ao “tu”. Essa presença marcante de questionamentos sucessivos que o “eu” vai apresentando ao interlocutor anônimo procura criar forte envolvimento do interlocutor com os argumentos do “eu”. Do restante do verso 149 até a metade do verso 150, o “eu” faz uma exortação a si mesmo e, a partir de então, o interlocutor entra em cena e tem início um diálogo com turnos simétricos entre os dois personagens até o verso 171, fim do poema, dando ao final um caráter nitidamente dramático, teatral.
     O “eu” inicia sua fala num tom irônico, e diríamos jocoso, desqualificando a literatura que lhe é contemporânea, quer nas epopeias com seus temas míticos, quer nas comédias togadas (1) ou nas elegias. Diante de tanta mediocridade por que ser sempre um ouvinte – Semper ego auditor tantum (I,1) ? Por que não aventurar-se a literato? Educação formal ele teve, pois frequentou as classes de gramática e de retórica nas quais evitou a palmatória (ferula  v. 15) e praticou exercícios retóricos (suasoriae), aconselhando o ditador Sila (80 a.C.) a ir para casa dormir (gozação) – Et nos ergo manum ferulae subduximus, et nos / consilium dedimus Syllae, priuatus ut altum / dormiret ...(I,15-17). O gênero que escolhe é a sátira e seu paradigma é Lucílio, considerado o criador da sátira romana, como se pode depreender da metáfora e da perífrase feitas nos versos – Cur tamen hoc potius libeat decurrere campo, / per quem magnus equos Auruncae flexit alumnus, (I, 19-20): “Por isso de preferência seja-me lícito caminhar no mesmo campo pelo qual o grande filho de Aurunca (2) domou os cavalos”. Para tanto, pede a anuência do “tu”, o interlocutor anônimo – si uacat ac placidi rationem admittitis, edam. (I, 21): “desde que esteja(s) livre e com brandura permitas, mostrarei a razão”. 
     O “eu” prossegue – difficile est saturam non scribere. Nam quis iniquae/ tam patiens urbis ... (I, 30-31): “é difícil não escrever sátira. Pois quem tão paciente da cidade iníqua (Roma)?”. Vemos assim, que os temas para os poemas, a matéria-prima literária, está ali na Urbs que se desenrola diante dos olhos do poeta, o qual passa a apresentar inúmeros exemplos de situações que justificam o emprego da sátira como instrumento de invectiva contra a sociedade. Esses exemplos, embora representem situações distintas, podem, na sua essência, ser reduzidos à oposição riqueza x pobreza, sendo a busca desmedida pela riqueza e a própria riqueza os males primários geradores de todos os outros males: avareza (rapacidade), delação, prostituição, falsificações, assassinatos – meios para a conquista do dinheiro; luxuria, gula, jogatina, desrespeito aos deuses – consequências da conquista do dinheiro. Assim podemos citar as seguintes passagens a título de ilustração:

      Cum te summouveant qui testamenta merentur/ noctibus, in caelum quos 
euehit optima summi/ nunc uia processus, uetulae uesica beatae? (I, 37-39) “Quando te afastam do caminho os que ganham testamentos na calada da noite e os que encontram o melhor caminho para chegar ao céu: a vulva de uma velha opulenta? (3)”

      Quid enim saluis infamia nummis? (I, 48) : “Que importa a infâmia quando se
consegue pôr a salvo o dinheiro?”

     Aude aliquid breuibus Gyaris et carcere dignum/ si uis esse aliquid. Probitas
laudatur et alget. (I, 73-74): “Se queres ser alguém, ousa algo digno da pequena Gíara (4) ou do cárcere. A honestidade é louvada, mas tirita de frio.” 

     Quis totidem erexit uillas, quis fercula septem/ secreto cenauit auus? (I, 94-95)
“Qual dos nossos avós construiu tantas casas de campo? Qual deles comeu sozinho numa ceia sete iguarias?”

uincant diuitiae (I, 110): “vençam as riquezas”

inter nos sanctissima diuitiarum/ maiestas, etsi funesta pecunia templo/ 
nondum habitat nullas nummorum ereximus aras (I, 112-114): “entre nós
é muito mais sagrada a majestade das riquezas, embora ainda não more
num templo, o funesto dinheiro, nem tenhamos erguido altares às moedas”

     Vestibulis abeunt ueteres lassique clientes/ uotaque deponunt, quamquam
longuissima cenae/ spes homini; caulis miseris atque ignis emendus (I, 132-134): “Velhos e cansados clientes abandonam os vestíbulos e perdem toda esperança, embora muito remota, de uma ceia com o homem; os coitados deverão comprar-se couve e o fogo (5)” 


     Como a resumir suas ideias o “eu” afirma – quidquid agunt homines, uotum, timor, ira, uoluptas,/  gaudia, discursus, nostri farrago libelli est. (I, 85-86): “tudo o que fazem os homens, a promessa, o medo, a ira, o prazer, as alegrias, as intrigas, essa mistura (6) é objeto de nosso livrinho (7)”.                    Apoiando-se no fato de que, caso não tenha dom poético, tem a indignação dentro de si – Si natura negat, facit indignatio uersum (I, 79): “Se a natureza nega, a indignatio (8) faz o verso”.
    Abandonando o presente, o poeta faz uma incursão no futuro: Nil erit ulterius quod nostris moribus addat/ posteritas, eadem facient cupientque minores ( I, 147-148): “ Nada haverá que o porvir acrescente aos nossos costumes; do mesmo modo farão e desejarão os vindouros”. Todo vício nunca saiu do  abismo. Resta pois, ao “eu”, a autoexortação, por via metafórica, na imagem de  içar e a soltar todas as suas velas ao vento, ou seja, a dedicar-se a compor sátiras – ... Vtere uelis/ totos pande sinus ... (I, 149-150).
     Nesse ponto, o interlocutor, que, até então, ouvira em silêncio as argumentações do “eu”, toma a iniciativa do discurso, e estabelece-se um diálogo com turnos equilibrados entre os interlocutores, semelhante a um texto teatral, um texto dramático. O “tu” aconselha o “eu” a ter muita cautela, pois escrever sátira contra os poderosos contemporâneos é muito perigoso - ... Tecum prius ergo uoluta/ haec animo ante turbas:  galeatum sero duelli/ paenitet. (I, 168-170): “Então pensa bem antes de soprar nas trombetas: arrepende-se tarde do duelo quem já traz na cabeça o capacete”. Ao que o “eu” arremata – Experiar quid concedatur in illos/ quorum Flaminia tegitur cinis atque Latina. (I, 170-171): “ Que seja! Tentarei ver o que se pode dizer contra aqueles cujas cinzas estão guardadas ao longo das vias Flaminia e Latina (9).”. O “eu” volta-se então para o passado, não o passado mítico, mas o passado recente, entre aqueles que foram providos de riquezas, para buscar material para suas invectivas.
     Ora, se o poeta se propõe a satirizar a sociedade romana, mostrando na maior parte de seu poema a situação presente dessa sociedade que sob seu ponto de vista, está totalmente corrompida; se afirma que o futuro será o espelho do presente, isto é, tão podre quanto hoje, e se vai buscar no passado material para seu trabalho significa que os vícios existiram ontem, existem hoje e continuarão a existir amanhã, argumento que enfraquece muito a tese de que a intenção de Juvenal era, por meio de suas sátiras, promover uma reforma geral na moral da sociedade romana, que a sátira juvenaliana era instrumento de educação social, que essa sátira era poesia didática, pois se assim fosse, seria estranho instrumento, aprioristicamente impotente, uma vez que o hoje, reflexo do ontem, será a imagem do amanhã. Essas considerações permitem que se especule que a indignatio de Juvenal fosse mais retórica do que sentimento nascido de fato no âmago do poeta, principalmente se levarmos em conta que o poeta no final da sua sátira programática afirma que vai criticar o passado, isto é, vai chutar cachorro morto. Não tem lógica! Fica a forte sensação que o poeta era um trocista, tremendo humorista, gozador.
     Resumindo, para concluir, podemos dizer que a Sátira I de Juvenal é um poema diálogo no qual um “eu”, dialogando com um interlocutor anônimo, justifica-se, face à degradada situação da sociedade romana, cuja causa primária é a cupidez dinheirista das pessoas, por que é inevitável compor sátiras e deixa transparecer que essa sua atitude em nada modificará a sociedade, pois os vícios de hoje foram herdados do passado e serão transmitidos às gerações futuras. Neste ponto, lembra-nos o provérbio um tanto chulo, chulo mas afinado com o que entendemos seja um dos componentes do espírito satírico juvenaliano: “mudam as moscas, mas a merda continua sempre a mesma.”
     Transcorridos dois mil anos olhando a nossa volta podemos constatar o quanto a previsão de Juvenal estava certa.

Notas
1. Comédias de característica romana nas quais os atores usavam a tradicional toga e que se distinguiam das comédias “palliatae”, de característica grega, nas quais os atores vestiam o “pallium”. 
2. Cidade ao norte da Campania, onde nasceu Lucílio em aprox. 180 a.C.
3. O poeta refere-se a uma categoria de exploradores de mulheres velhas as quais, em troca de algumas noites de prazer, comprometiam-se a deixar-lhes uma parte da herança.
4. Gíara, ilha do mar Egeu aonde de deportavam os criminosos mais cruéis.
5. O poeta faz menção ao estado precário da clientela que pouco recebia de seus patrões usurários: nem a caena recta, convite para jantar e nem a espórtula, em forma de cesto com alimentos ou, certa quantia em dinheiro.
6. Farrago, no sentido concreto, denotativo, significa: cevada misturada com outros grãos servida aos animais; fica evidente a correlação que Juvenal pretende fazer com a palavra satura, que significa: prato de diferentes iguarias (de origem macedônica), podendo ser formado por um sortimento de frutos, e que costumava ser oferecido à deusa Ceres, por ocasião das festas em agradecimento pelas colheitas e que deu origem à palavra satira, gênero literário. É mais uma alusão, revestida de muita ironia, que o poeta faz quanto ao tipo de obra que vai compor, sátira, atribuindo-lhe um valor literário menor, não é um prato com iguarias, mas uma mistura de simples grãos, e (ah! mente viperina) para ser servido não aos deuses ou humanos, mas aos animais.
7. Libellus, livrinho, dá um tom de modéstia (falsa?) à sua obra. É interessante notar que o poeta usa o termo livro (liber) e não poema (carmen) o que nos permite inferir que ele está se referindo ao seu Livro I, composto pelas Sátiras de I a V, sendo muito provável que as de II a V já estivessem prontas e que ele estivesse então escrevendo a I, prolegômenos ao Livro I e à sua obra.
8. A indignatio foi a principal característica das primeiras nove sátiras de Juvenal e significou uma subversão ao sistema de ensinamento diatríbico, com marca cínico-estoica, que era patrimônio da reflexão moralista romana, em dois pontos fundamentais: aversão violentamente sarcástica contra o rico; e drástica refutação do conceito de laeta paupertas (“pobreza aprazível”), tão cara (cinicamente?) a Sêneca (do alto de sua riqueza ...) o qual pode ser considerado um exemplo típico de representante do moralismo diatríbico contra o qual coloca-se a indignatio de Juvenal, com sua linguagem deliberadamente ferina e exasperadamente materialística (Bellandi, 1980: 10-12). De acordo com Rudd e Courtney (op. cit. p.5) a indignatio é um termo retórico que não significa simplesmente um sentimento de indignação por parte do locutor do discurso, mas também um procedimento retórico para levar ao interlocutor o mesmo estado emocional (cf. Cícero, De inventione 1, 100-105).
9. Ao longo das vias Flaminia, Latina e Apia, três importantes estradas que partiam da Urbs em direção ao interior da península, nos subúrbios de Roma, eram construídos os sepulcros das famílias romanas abastadas.     
      
Bibliografia

BELLANDI, Franco – Etica diatribica e protesta sociale nelle satire di Giovenale.
Bolonha: Pàtron Editore, 1980.
D’ONOFRIO, Salvatore – Os motivos da sátira romana. Marília: FFLCH-USP, 
1968.
GIOVENALE, Decimo Giunio – Satire. Introdução de Luca Canali. Tradução e 
notas de Ettore Barelli. 4. ed. Milano: Rizzoli, 1989. 
HIGHET, Gilbert – Juvenal the Satirist. A study. Nova Iorque: Oxford University
Press, 1961.
LEONI, G. D. – A literatura de Roma. 10. ed. São Paulo: Livraria Nobel S.A., 
1971. 
PARZIALE, Mariano – A sátira de Juvenal como instrumento de educação social.
Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. 2 v.,
São Paulo, 1995.
REBOUL, Olivier – “O sistema retórico” in: Introdução à Retórica. Tradução de
Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RUDD, Niall e COURTNEY, Edward – Juvenal satires I, III, X. 2. ed. Bristol: 
Bristol Classical Press, 1990.


(em “Ensaios Desnecessários” – inédito)

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O riso na Retórica de Cícero

             Cícero, em sua obra de retórica, De oratore, aborda a questão do uso do risível, daquilo que provoca o riso, nos discursos oratórios, em longo trecho, maior do que o destinado à dispositio, na parte que antecede o encerramento de sua exposição sobre as características da inuentio. Esta monografia pretende apresentar, sucintamente, o resultado da leitura crítica desse trecho, apoiada em Alberti (2002).
            Antônio, um dos interlocutores do diálogo – forma adotada por Cícero para construir o De oratore, fato que dá à obra um caráter dialético – introduz a questão do risível nos discursos oratórios com a afirmação: “Suauis autem est et uehemeter saepe utilis iocus et facetiae – Além disso, a brincadeira (iocus) e os gracejos (facetiae) são agradáveis e frequentemente muito úteis”. Depois, diz que, se outras partes do discurso são passíveis de ensino baseado numa técnica, o risível não consegue se submeter a regras e é próprio da natureza do orador.
           César, outro interlocutor, considerado por Antônio um orador mestre no uso do risível em seus discursos, convidado a tratar do assunto, concorda quanto à impossibilidade de estabelecer uma doutrina sobre o uso do risível nos discursos, e justifica seus argumentos dando como exemplo certas obras gregas que tratam de coisas risíveis (‘de ridiculis”) que, quando contam piadas, conseguem agradar, mas, quando pretendem reduzir o risível a preceitos, ficam insípidas, a ponto de tornarem-se risíveis pela sua insipidez, e diz crer que é impossível estabelecer uma doutrina em tal matéria que possa ser ensinada – “Qua re mihi quidem nullo modo uidetur doctrina ista res posse tradi.” Embora tendo feito tal afirmação, César passa a expor suas ideias sobre o assunto, tratando-o de acordo com um plano bem preciso. Primeiramente diz que há dois tipos de gracejos (“duo genera facetiarum”): a zombaria (“cauillatio”), que pode estender-se uniformemente por todo o discurso; e a mordacidade (“dicacitas”), que deve ser usada de maneira sutil e breve. A cerca do riso cinco questões devem ser colocadas (“de risu quinque sunt quae quaerantur”):
1ª o que é o riso?
2ª de onde vem o riso?
3ª convém ao orador querer provocá-lo?
4ª até que ponto?
5ª quais são os gêneros do risível?    
            A resposta à primeira questão: o que é o riso, com sua explosão repentina, produzindo agitação nos flancos, na boca, nas veias, nos olhos, na fisionomia – é deixada para Demócrito, o filósofo que ri das loucuras humanas, responder, porque não é assunto pertinente ao orador.
     Quanto à segunda questão, a proveniência do riso está em uma torpeza (“turpitudine”) e em uma deformidade (“deformitate”), sendo o jeito mais eficaz de provocar o riso apresentar a torpeza de uma forma que não pareça torpe. Cícero, associando o risível à torpeza e à deformidade, coloca suas ideias sobre o riso na tradição de Aristóteles, conforme apresentado na Arte Poética (ARISTÓTELES, s/d:246), para quem essas torpeza e deformidade do risível não devem apresentar caráter doloroso ou corruptor, como, por exemplo, a máscara cômica feia e disforme, que, porém, não é causa de sofrimento.
      À questão, se convém ou não ao orador querer provocar o riso, a resposta é afirmativa, pois ele traz diversos benefícios ao discurso a saber:
a)      capta a benevolência do ouvinte;
b)      provoca surpresa tanto nas ações de defesa quanto de ataque;
c)      abate, embaraça, enfraquece, intimida, refuta o adversário;
d)     indica que o orador é homem polido, erudito, urbano;
e)      mitiga a tristeza e a severidade;
f)       relaxa as coisas odiosas.
    Os limites dessa utilização, de que trata a quarta questão, devem ser estabelecidos, porém, com muito critério. O primeiro cuidado a ser observado é a moderação (“moderatio”). Deve evitar atacar as pessoas que são estimadas. No âmbito da torpeza, nem a extrema perversidade, que leva ao crime, nem a extrema miséria se prestam ao risível; os assuntos nos quais o risível se manifesta com facilidade são aqueles que não provocam nem grande ódio nem extrema misericórdia. Assim, desde que evite atacar os indivíduos estimados, os miseráveis e os facínoras, que deveriam ser levados ao suplício, em todos os outros vícios o orador encontra matéria para o risível. Quanto às deformidades e aos defeitos do corpo, são eles, frequentemente, bons temas para o risível, mas aqui, como em outros assuntos, a medida justa deve ser observada. O orador deve evitar os ditos insípidos, a bufonaria e a mímica. Em resumo, o uso do risível, e as limitações a esse uso, no discurso oratório, devem adequar-se de maneira tal a satisfazer ao objetivo principal da retórica que é o de conseguir persuadir aqueles que recepcionam o discurso a acatar as ideias que o discurso defende. A presença do riso retórico subordina-se a um fim sério: o objetivo não é divertir, pelo prazer do divertimento, mas ser útil à causa maior da retórica que é a persuasão. O risível deve, então, obedecendo às prescrições da retórica, contribuir para que o discurso se ajuste às pessoas e às circunstâncias (espaço-tempo), isto é, observe – a oportunidade, “occasio”, “kairós” e a adequação, “decorum”, “prepón” – a fim de que esse discurso seja mais persuasivo. 
           A quinta questão proposta – quais são os gêneros do risível? – é respondida por César dizendo que há dois gêneros de gracejos (“duo genera facetiarum”): um em que o risível se dá pelo fato (“re”), outro, pelo dito (“dicto). O primeiro caracteriza-se por uma maneira contínua de descrever os caracteres humanos e assim, poderia ser aproximado à zombaria (“cauillatio”), o segundo tem um caráter mais pontual  e poderia ser aproximado à mordacidade (“dicacitas”), de acordo com a tipologia de gêneros descrita anteriormente, contudo essa aproximação não é apresentada de forma explícita no texto.
   O gênero do risível pelo fato (“re”) refere-se a um argumento do discurso que tem natureza risível e que depende muito mais da ideia contida nesse argumento do que das palavras empregadas no mesmo e à ação do orador durante o discurso: a voz, os gestos, o tom, a postura, enfim, a performance do orador. O risível pelo fato não está estritamente vinculado às palavras, mas vinculado à prova ou demonstração e à ação. No risível pelo fato a graça pode subsistir independente das palavras empregadas, pois a graça está na ideia e na ação. Dentro desse gênero podem ser distinguidas as seguintes espécies:
a)      a anedota (“fabella”), cuja virtude deve estar no realce: dos fatos narrados, dos costumes da personagem, de suas falas e de sua fisionomia, fazendo com que pareçam reais aos ouvintes;
b)      a imitação cômica (“deprauata imitatio”), que “consiste em caricaturar o ar e a voz do adversário ou ainda copiar qualquer coisa de seu gesto”, devendo, porém, o orador evitar atitudes que possam aproximá-lo dos “etólogos mímicos” (“mimorum ethologorum”)(1), pois o resultado seria exagero e obscenidade;
c)      a narração em forma de apólogos (“narrationes apologorum”);
d)     o uso de símile ( “similitudo”), por meio de : comparação (“collatio”) e imagem (“imago”);
e)      a atenuação ou o exagero dos fatos acarretando admiração inacreditável ( “quae minuendi aut augendi causa ad incredibilem admirationem efferuntur”);
f)       a vinda à luz de um pensamento obscuro e secreto mediante uma circunstância e uma palavra insignificante (“cum parua re et saepe uerbo res obscura et latens inlustratur”);
g)      o uso de ironia em toda a fala, dissimulando com um tom sério, para dizer uma coisa contrária daquilo que se pensa realmente (“dissimulatio quom toto genere orationis seuere ludas, quom aliter sentias ac loquare”);
h)      o homem ilustrado dizer uma asneira (“non stultus quasi stulte cum sale dicat aliquid”);
i)        a reversão da brincadeira contra aquele que a fez (“qui dixit, inridetur quo dixit”);
j)        a atitude de deixar as intenções maliciosas aparecerem sem explicitá-las (“quae habent suspicionem ridiculi absconditam”);
k)      a permanência em atitude calma e imperturbável (“ridiculi genus patientis ac lenti”);
l)        a explicação de fatos por conjecturas totalmente falsas, mas de maneira arguta e engenhosa (“quae coniectura explanantur longe aliter atque sunt, sed acute atque concinne”);
m)    o uso de frase de contraste (“discrepantia”);
n)      o emprego de certos avisos dados de forma amigável (“admonitio in consilio dando familiaris”);
o)      a brincadeira apropriada ao caráter de tal ou tal (“quom quid cuique consentaneum dicitur”);
p)      a expectativa frustrada (“praeter exspectationem”);
q)      o conceder ao adversário aquilo que ele recusa a dar (“concedere aduersario id ipsum quod ille detrahit”);
r)       o desejar uma coisa impossível (“fieri non possunt, optantur”);
s)       as imprecações, as surpresas, as ameaças ( “exsecrationes, admirationes, minationes”).

   O gênero do risível pelo dito (“dicto”) consiste em palavras ou expressões picantes (“uerbi aut sententiae acumine”). O risível pelo dito está estritamente vinculado à palavra ou à expressão empregada e nele, a graça não subsiste se as palavras forem alteradas, pois toda a graça está contida nas palavras empregadas; são essas que trazem o sal do risível, e se modificadas, fazem com que se perca esse sal (“salem amittit”). Se o orador, na imitação cômica, deve evitar comportamentos que o aproximem dos “etólogos mímicos”, no risível pelo dito, deve fugir do uso de expressões comuns à mordacidade oratória bufonesca (“scurrilis oratori dicacitas”), devendo estar atento às circunstâncias, moderando sua mordacidade, controlando sua fala, sendo senhor de sua língua, qualidades que distinguem o orador do bufão. Para o orador o risível sempre deve ter uma justificativa; seu objetivo não é agradar por agradar, mas ser útil a uma causa, ao contrário do bufão que faz graça o dia todo e sem razão. Neste gênero, entre outras, podem ser distinguidas as seguintes espécies:
a)      a alegoria (“immutata oratio”);
b)      a metáfora ( “translatum uerbum”);
c)      a antífrase (“inuersum uerbum”);
d)     a antítese (“relatum contrarie uerbum”);
e)      a palavra de duplo sentido (“ambiguum dictum”);
f)       a paronomásia (“parua uerbi immutatio”);
g)      o criar uma expectativa e concluir outra (“aliud expectare aliud dicere”);
h)      o explicar um nome próprio (“interpretatio nominis”);
i)        o intercalar citações engraçadas (“uersus facete interponitur”);
j)        o usar provérbios (“prouerbia”);
k)      o tomar uma palavra literalmente (“ad uerbum non ad sententiam”).

   O grande número de espécies apresentadas por Cícero tanto dentro do gênero do risível pelo fato, quanto do risível pelo  dito é prova inequívoca de que o assunto riso é caso sério, complexo, escorregadio. Estabelecer-se princípios ou ideias gerais que deem conta do tema é tarefa das mais difíceis, senão impossível, tendendo a sistematização dessas ideias para a fragmentação, com a apresentação de um grande elenco de casos ou exemplos. De uma maneira geral, grande parte das espécies de risível apresentadas “são figuras de estilo, divididas, no ensinamento retórico, em figuras de coisas e de palavras.” (ALBERTI, op. cit., 60). As figuras de coisas tenderiam para o gênero do risível pelo fato e as de palavras para o pelo dito. Poder-se-ia também, ainda numa tentativa de visão generalizadora  da questão, dizer que o risível de Cícero, uma vez que têm como fontes primárias uma torpeza e uma deformidade, alinha-se à tradição da comédia segundo Aristóteles no que restou da Arte Poética (2).
     A inserção da análise do risível dentro da inuentio e com um espaço maior do que o destinado à dispositio sugere que para Cícero o assunto tinha bastante importância (3). Outro ponto a ser lembrado é que para Cícero o risível deve ter sempre uma razão, seu objetivo não é divertir, mas ser útil; os oradores podem até mesmo observar que algumas fontes de risível servem também a pensamentos sérios (“quoscumque locos unde ridicula ducantur ex isdem locis grauis sententias posse duci”), a diferença estando na aplicação: o pensamento grave aplica-se às coisas honestas e sérias, o risível ao que é um tanto torpe e disforme (“grauitas honestis in rebus seuerisque, iocus in turpiculis et quasi deformibus ponitur”). Cícero coloca, assim, sua “teoria do riso” em estreita ligação com os fundamentos da Retórica, nos quais não há lugar para diletantismo vago e inútil. O riso na Retórica de Cícero é arma que o orador usa para aumentar o poder de persuasão do seu discurso.  
    
   

               
Notas
1.       Os gregos chamavam “hqologoi” aos saltimbancos grotescos que, seja na rua, seja no teatro, levavam alegria à multidão por meio de imitações burlescas (CÍCERO, op. cit., 107). Os “etólogos mímicos” eram os “etólogos romanos” presentes nas encenações dos mimos.
2.       No que restou da Arte Poética, Aristóteles, no breve tratamento que dá a comédia, diz que o risível reside numa torpeza e num defeito que não apresentam caráter doloroso ou corruptor, devendo ser anódinos e inocentes, não devendo ser causa de sofrimento. E também na Arte Retórica (ARISTÓTELES, op. cit., 128),  no Cap. XII, do Livro II, ao tratar dos caracteres dos jovens diz que é próprio dos jovens rir por serem propensos a gracejar, sendo o gracejo uma espécie de insolência polida. Aristóteles, assim, não atribui uma natureza disfórica, negativa para o riso; em nenhum momento afirma, conforme apresentado por SKINNER (2002: 8,9), que “o gracejo é uma injúria para desonrar a outro para nosso divertimento, ... o riso é sempre expressão de nosso desprezo”  “o riso reprova a falha de caráter, ... e pede sentimentos de desprezo”, sendo essas afirmações, provavelmente, ilações desse último autor.  
3.       A inuentio é a primeira fase a ser observada na construção de um discurso oratório. “Por um lado é o “inventário”, a detecção pelo orador de todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. Por outro, é a “invenção” no sentido moderno, a criação de argumentos e de instrumentos de prova:” ( REBOUL, 1998:54). Cícero inserindo sua análise do risível dentro da inuentio dá ao assunto status elevado, de natureza genérica, sendo elemento gerador de discurso que pode entrar em ação a qualquer momento, em qualquer parte do discurso. Ao contrário do que faz, posteriormente, Quintiliano na Institutio Oratoria, livro VI, em que trata da peroratio, última parte do discurso, cuja função principal é apresentar um balanço do discurso, ao abordar a questão das paixões que devem estar presentes no discurso e ser suscitadas no público e no juiz, aí então, faz uma análise do risível  “A questão do riso está portanto, inserida na discussão sobre as paixões, sendo o risível um dos últimos (grifo nosso) recursos para convencer e seduzir o ouvinte.”(ALBERTI, op. cit., 63).   



Bibliografia

ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento. 2ª ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, 14ª ed., s/d.
CÍCERO. De oratore. Texto estabelecido e traduzido por Edmond Courbaud. Paris: “Les Belles Lettres”, livro II, LIV-LXXI,290, pp. 96-128.
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

SKINNER, Quentin. “A arma do riso” em Revista Mais!, Folha de S. Paulo, 4 de agosto de 2002.


(em "Ensaios Desnecessários" - inédito)